"A unica verdade é o amor para além da razão"
A linha que separa paixão e obsessão, sabemos, sempre foi muito frágil. Vira e mexe, a gente se depara (ou se torna) uma dessas pessoas insones, transtornadas, absolutamente nervosas por dois olhos e um jeito de sorrir. No inicio é uma ideia estimulante, se torna pensamento involuntariamente recorrente, até a hora em que você, sem querer, emite para si mesmo um sorriso sonoro e bestificado que sentencia o que está correndo a todo vapor no seu sangue. E quando começamos a nos questionar o que é a causa do descontrole (lá vem o bordão) já é tarde demais. Mas quem vai dizer que há mal nisso? Apaixonar-se é dar um banho de sol na alma. É a luz dos olhos, do coração, dos dentes.O que acontece, entretanto, é que em boa parte dos casos a paixão é apenas o começo da narrativa, aquela (e única) em que se é feliz.
Eu costumo pensar que opostos não são realmente duas coisas absolutamente distintas. São extremos. Da mesma forma como o nosso reflexo está numa extremidade oposta à nossa mas que é, ainda assim, basicamente a mesma coisa. Tal qual amor e ódio cuja distinção é só uma questão de palavras bonitas, não é assim uma tarefa tão simples distinguir se você está apaixonada ou obcecada (os meus opostos de hoje). Como eu disse, paixão pode ser só a parte de um todo ou a extremidade de uma mesma linha de raciocínio. Se você aumenta demais, põe muita intensidade no sentimento, é aqui que devo oferecer as minhas condolências porque se curar de uma obsessão é dificil viu gatona.
"As vezes estou no computador, e entro em pânico. Fico muito agitada. Eu acho que se alguém morresse cada vez que aperto F5, não sobraria ninguem com vida, porra."
Oh céus. A droga do F5, a eterna espera pela janelinha do msn piscar, de subir o próximo tweet. Nesse mundo virtual não há mais espaço para suspiros na janela do quarto. Hoje o apaixonado assume para si, mais do que amante, a função de investigador. Ninguém mais espera por um encontro ou um telefonema pra conhecer melhor alguém. Uma vez que você está inserido na rede, está suscetível a ter sua vida desbravada por qualquer um. Em tempos de "o que você está fazendo?" e "o que você está pensando?", não há como se passar por desconhecido. De repente você está conversando com alguém e ela responde um mero "eu sei" quando você diz que seu maior medo é de baratas escandinavas, coisa que você nunca disse a alguém mas que, é verdade, provavelmente usou na descrição de perfil do facebook.
E aí você tá lá apaixonada, perdidamente, e aquela angústia só alivia a medida que você começa a descobrir o que a pessoa faz e pensa e aí quanto mais detalhada é a informação é como se você soubesse onde está pisando, como se você estivesse no controle da situação, como se nenhuma verdade estivesse sendo escondida de você e é ótimo sentir-se assim. As redes virtuais te oferecem um grau de controle, um nível de informações preciosas que são absolutamente viciantes. Sem que você perceba, a doença cresce nos confins do seu corpo como uma praga que se alastra devastando tudo que encontra pela frente, exceto o computador (seu divã e central de investigação).
"Sei de tudo. Tudo. Sei onde ele trabalha, os restaurantes que frequenta. Se ele tivesse ideia de quanto estou bem informada... Seu pai teve um derrame em 2002. Sua mãe tem um quiosque de flores. Se ele soubesse, ele provavelmente entraria no programa de proteção à testemunha."
No nosso tempo a paixão ganhou combustível para alimentar o seu lado mais sombrio e devastador que conhecemos pelo nome de obsessão. Você tem tudo nas mãos. Fotos, hora, data, local, depoimentos, pistas, um dossiê... e pra que? Por que quando se está obcecado por uma pessoa buscamos saber tudo que há para se saber sobre ela? É como se dessa forma o sentimento de rejeição pudesse ser anulado pelo fato de que temos controle sobre a pessoa que nos rejeitou. E é certo que onde existe controle existe segurança.
O que acontece é que o obcecado verídico é um estado patológico do rejeitado. E há todo tipo de rejeitado, desde aquele que mantém pouco ou nenhum vínculo com o sujeito de sua devoção até aquele que é rejeitado dentro de um relacionamento, seja isto real ou fruto de suspeitas e desconfianças. Este último, tenho pra mim, certamente que é o pior dos estado porque o obcecado nunca saberá se tudo não passa de mera fantasia, ou não. Há tortura mais sufocante do que viver assim? Viver num mundo em que amor e histeria se misturam num processo gradativo de perda da capacidade de discernir entre certo e errado, seguro e perigoso. Sim, porque neste estado patológico a razão está e sempre estará com a pessoa pela qual se nutre uma obsessão. "Alguém que você coloca num pedestal está sempre certa".
"Agora ele está estragando todos meus lugares favoritos. Porque quando ele não está la, bebendo com os amigos, fico entendiada. Não tem graça."
E não tem graça porque ele é a única coisa que te faz bem realmente. Quando você está triste, é por causa dele. Quando está feliz, fica triste do mesmo jeito porque ele não está lá para dividir o momento. Você se embriaga, fica transtornado e o primeiro pensamento que te vem na cabeça é ligar praquela pessoa. É imediato. Uma hora você realiza para o fato de que nada que seja feito, nenhum lugar que se vá, ninguém que se conheça será capaz de reverter a situação em que você se encontra pela simples razão de que não se trata em absoluto de um gesto, lugar ou pessoa. A obsessão está enumerada na lista de doenças que se adquirem dentro e não fora de si mesmo. É você que é a causa e o efeito.
Não se trata de uma escolha, se tornar essa débil lembrança de si próprio. Talvez você jamais tivesse entrado nessa história se soubesse onde ela ia terminar. Ser um corpo no piloto automático, sem animo para nada que não tenha a ver com uma pessoa em específico. A obsessão se fundamenta na idéia de buscar a todo custo, de conseguir para si o objeto de seu desejo, atribuindo a este êxito a razão da própria felicidade. O que normalmente se ignora é que a frustração é justamente a unica fonte de alimento da obsessão. Quando mais você busca sem conseguir, mais escuro fica. E de qualquer maneira, se conseguisse, não ia saber direito o que fazer com o que tem. É bem possível que encontrasse novas maneiras de se tornar um grande caos dentro de um relacionamento conturbado. Como eu já disse, esse veneno que circula nessas pessoas nasce de um quadro típico do apaixonado e cresce como estado patológico da rejeição, muito embora não seja verdade que todo apaixonado/rejeitado seja um obcecado. Isso nos leva a visão clara de que é tudo uma questão de saber lidar com ser rejeitado ou entender que estar apaixonado por alguém não é, em absoluto, o assunto principal da sua vida.
"Você não telefona pra ele, não escreve ou fala. Acabou. Se você sabe que ele está numa festa ou bar, você não vai. Levei cerca de um ano. Toda vez que via, ficava imaginando. Tive cãibras de ciumes da sua nova namorada."
Uma hora você cansa, entra em colapso, não aguenta mais viver nesse descontrole emocional que escraviza a sua força de vontade. Você já se submeteu a tudo que tinha pra se submeter, já fez coisas que nunca imaginou um dia fazer, sofreu o pão que o diabo amassou atirando ao fogo e, acima de tudo, perdeu dias valiosos de sua vida na justificativa inadmitida de que você só queria era estar com aquela pessoa. Nesse estado em que o coração apaixonado reconhece a dor inesquecível que causou a si mesmo e a alma já não consegue emitir luz alguma, é ali que você para e admite muito obscuramente que não vai mais viver assim. E o primeiro passo, imediato e invariável, é evitar de todas as maneiras possíveis o botão de ignição de todo o processo doloroso que você viveu. Você pega aquela pessoa e a exclui de todos os âmbitos da sua vida porque sabe que essa é a única forma de sobreviver. Sem notícias, sem imagens, sem recados, sem nada que possa reanimar o desejo, trazer a tona todas as lembranças do que você viveu e que você sabe ainda exercem poder. É a velha história do coração não sentir aquilo que os olhos não vem.
Cada um tem o seu tempo. Uns superam uma paixão tão rápido quanto se apaixonam, outros demoradamente. Mas a superação acaba sendo sempre o lugar comum de todos. Não é fácil e sempre vai existir recaídas, o que é diretamente proporcional a intensidade do que se viveu. E acho que esse deve ser um dos maiores obstáculos. Quantos adolescentes existem para cada pessoa madura que sofre, explosivamente, por uma paixão? 1000 para 1, no mínimo, bem por baixo. Quando a gente vive mais, vive novas e várias experiencias, a gente se dá conta de que o fim de um relacionamento ou a rejeição não é o fim do mundo que a mente de um adolescente acredita ser. Na realidade existem muitas outras coisas mais valiosas e que merecem maior zelo e atenção, do que um relacionamento. Com o tempo adquirimos responsabilidades, perdas, vitórias, necessidades e cicatrizes suficientes para finalmente entender que a felicidade não é dependente de ninguém ou que, quando se ama, é fundamental que isto não obscureça todos os outros aspectos da sua vida.
"As folhas de outono cairam, a neve chegou, natal. Primavera, verao e... eu superei. Quando penso no que fiz, o dinheiro que gastei para faze-la me amar. Penso em tudo isso. Estou tão envergonhado."
Quando você olha pra trás e lembra do que você viveu com alguém isso costuma ser um exercício de desprendimento. Você lembra do que foi bom, mas deixa estar. Faz mal querer que as coisas persistam quando elas nem fazem mais sentido atualmente. Quando a gente se recusa a reconhecer uma verdade, passamos a viver num emaranhado de fantasias que entorpece a nossa existência como seres humanos. A obsessão é a falência da intenção original que rege os nossos sentimentos valendo-se das noções primitivas de posse e ciúme. E falo assim porque é até meio urgente que se compreenda, mesmo você que mal chegou aos quinze, como relacionamentos são uma consequencia das nossas vidas e não a causa dela.
Relacionar-se é intrínseco ao ser humano, só que o mais importante é a forma como revertemos para o nosso próprio crescimento aquilo que experimentamos através disso. Toda experiência possui a intenção sobrenatural de ser positiva na construção de cada um de nós. Liberte-se da mesquinhez dos sentimentos baixos e seja superior à contrariedade que a vida te submete. Ninguém é assim tão importante para impedir o livre desenvolvimento da vida. Se você sentir que está passando mais tempo pensando em alguem, gastando mais energia por outra pessoa do que por si mesmo, sacrificando-se sempre em detrimento do bem estar de outra pessoa que você afirma ser, por consequencia, seu próprio bem estar então, acredite, você entendeu tudo errado. Sempre dá tempo de ser alguém melhor. Não adianta esperar por esse grande evento avassalador pelo qual você está à espera secretamente durante todo esse tempo. Todo recomeço é também uma recriação de si próprio. Ninguém, senão você mesmo, será capaz de fazer isto por você. Recriar-se é, por definição, um exercício individual e intransferível.
Em 3, 2, 1...
(os depoimentos ao longo do texto foram retirados do filme 'les amours imaginaires' de xavier dolan)