9/21/2010

Não sei se o rímel ou o destino

Postado por Quanta Luz |


Achava injusto a forma como o despertador a acordava todos os dias, com crueldade. Como se arrancasse a força o cobertor que era seu escudo de proteção durante a tormenta de longas noites sem conseguir dormir. Pensava e quanto mais pensava menos achava a solução do problema que era, enfim, um ser vivo independente de sua vontade. Abria os olhos, acionava o modo soneca do celular e tornava a fechar os olhos. Mentia para si mesma que dormiria uma eternidade antes que acordasse no fim dos dez minutos que lhe restavam antes de despertar.

Despertar. Era tão dificil todos os dias... Sair do obscuro de seu quarto, onde nunca era dia e sua vontade era feita sem que ninguém questionasse. Pensava que pela manhã é a hora em que somos todos muito parecidos uns com os outros. Zumbis, semi acordados, realizando tarefas quase que automáticas desejando que o corpo não fosse assim tão pesado. Vestia o pijama pelo avesso pra poupar o trabalho de guarda-lo pela manhã, tamanha era sua latência diante do Sol. Mas era sempre ali, quando parava na frente do espelho do banheiro, que cada um começava a ser cada um. Aquele espelho guardava a história muda contada pelos olhos de muitos dias. Ressaca, alegria, dor e esperança. Pensou se seu reflexo precisava usar lentes, como ela. Achou que não.

Ligou o chuveiro. Quase chorou porque a água era fria. De manhã cedo somos todos assim, um dramalhão sem cabimento. Todos os problemas parecem maiores e toda perspectiva de futuro é peversa. A água caía sobre o corpo despido dela como o despertador fazia com sua mente... Acordava seus cabelos, descia pela curva de seu pescoço para contornar rapidamente os seios, brincava de montanha russa em suas pernas até descansar nos pés que, dificilmente, descansavam. Tinha no mínimo dois tipos de xampus, condicionadores, cremes e centenas de outros produtos para cada vez que lavava os cabelos. Não tinha espaço pra colocar toda aquela infinidade de parafernalha química que acabava escalando timidamente para o parapeito da pequena janelinha, por onde a luz agora já mal entrava.

Fechou o chuveiro, depois de muito decidir dentro dela a hora certa de faze-lo. Enrolou-se e abriu o guarda roupa. "Que droga ser mulher" pensou diante de todo o ritual que ainda precisava conduzir antes de abrir a porta de casa. Queria usar uma roupa confortável, mas ou ela estava apertada, porque engordou, ou estava amassada porque foi jogada de qualquer jeito lá dentro. Será que uma vez na vida, não poderia sair de casa a la mode de si mesma, sem preocupar-se onde está suja, onde está assanhada, onde está borrada, onde está a droga do meu remédio pra parar com a dor dessa cólica estressada?

Pôs, como tantas vezes, um vestido fácil e um par de rasteiras idem. Blush, pra parecer viva. Lápis nos olhos, por hábito. Estava sem vontade de batom... Há os dias certos para se usar batom. Pegou o cilindro de mousse pra montar os cabelos e achou que aquilo se passaria facilmente por chantily (teria o mesmo gosto?). Pressionou e quase desmoronou ao constatar que estava vazio. "Puta que pariu", pensou consigo mesma... Sabia que o cabelo ficaria no modo 'sem jeito' pelo resto do dia.

Olhou-se no espelho. Passou sobre ela, de repente e como não quisesse nada, a estranha e bem vinda vontade de ser diferente naquele dia. Cresceu dentro dela o desejo de que aquele dia não fosse igual a todos os outros. E castigou esse desejo como se, ao fazê-lo, o Universo, penalizado e a par do sacrifício, se dispusesse a realizá-lo. Seus dedos formigavam e ela sorria agora um sorriso de núcleo ruim da novela. Falando em outros termos, aquele, certamente, era um dia de rímel.

Abriu a porta de casa e o Sol incendiou seu apartamento. Os olhos demoram alguns segundos antes que pudesse enxergar a vida. Foi invadida pelas recordações dos dias que antecederam aquele... Dentro dela uma semente havia sido plantada debaixo do solo árido que conservava em seu coração. Lá nunca chovia e por isso não se preocupou que aquela semente pudesse germinar, crescer e dar frutos, dando inicio a uma reação em cadeia perigosa que transformaria o deserto que era seu coração em um lugar em que o céu é onde acaba as árvores. Por onde atravessam raios de luz na cor que, dizem, Deus nunca deixou que ser humano algum pudesse ver.

Mas ali estava ela vivendo o que havia para viver naquele espaço de tempo sem intenção que era seu dia. Sorria, muitas vezes por convenção, conversava, as vezes sem emitir-se. Sua vida era uma repetição de esforços, pessoas, tarefas e, o que é pior, de sentimentos. Não que fosse tudo um grande tédio e inutilidade. É que ela sempre esperou mais da vida. Muito mais. De toda forma as horas caminhavam e, acho, todos concordariam como é bonito ve-la viver. Movimentava-se como se o chão fosse um longo tapete feito do mais frágil de todos os tecidos frágeis, ela uma pluma de pavão, exótica e rara, flutuando desprovida de gravidade. Estava vivendo aquele dia como vivem as mulheres: numa luta para a qual não foram avisadas. Lidava com os problemas corriqueiros simultaneamente às dores mais viscerais e (tão comumente) literais. Não sabia em absoluto se a capacidade da mulher em ser duas em uma e uma para muitos, era um dom ou uma maldição. Se sentia cansada em ser capaz de fazer tudo que tinha que fazer, representar todos os personagens que tinha que representar, acreditar em todas as suas esperanças, ser feliz tão convictamente quanto sabia que poderia não ser, ser tudo e ainda assim sentir, ao se deitar, que se parecia com o pó chovido da quarta feira de cinzas... Quando passou o carnaval, a alegria, e a vida é apenas um slowmotion tragicomico de si próprio.

Mas aquele era um dia de rímel. E dias de rímel, para aquela pequena pluma de pavão, não era um dia como todos os outros. Foi ali, quando a noita havia caído e debruçava-se meticulosa sobre o espelho em que retirava a maquiagem achando toda aquela bobagem de rímel uma bobagem, que o abominável celular tocou fazendo vibrar a mesa feita da cerejeira que, dali alguns dias, estaria florescendo no antes deserto do seu coração. Era ele.

Essa é a hora, meu caro leitor, em que a música cresce e as falas emudecem. Em que o mocinho e a mocinha compartilham do mesmo espaço em lugares diferentes unidos pela intencionalidade dos fatos. Em que ela sorri olhando pra baixo num meneio de cabelos e ele repousa os olhos nas unhas das mãos sem enxergar nada. É este o exato momento em que as circunstâncias convergem e as escolhas se tornam fatalidades. Quando os dois dizem bobagens sem fim na tentativa desesperada que o silêncio não os separe. Ela, de um lado, não acredia que ele, de outro, pudesse ter discado sem errar todos os oito digítos que atendem pelo nome dela e que tornam aquela ligação um ato repleto (!) de propósito. Ela e ele por uma razão tão óbvia quanto era incerta. Dois corpos caminhando numa corda bamba chamada amor. Amor? Ora amor. Uma bobagem que a gente cria pra justificar a ausencia de realidade que nos acomete e que nada mais é do que o desespero alcançando seu nível crítico. Isso, fique claro, é o que eu penso (só às vezes). Mas vendo ela ali e ele lá, me pareceu correto, bonito e verdadeiro. Nunca ela tinha ouvido aquelas coisas e nem ele, jamais, havia dito. Aquela ligação fora um segredo contado sobre coisas tão bem guardadas (escondidas!) a ponto de que nenhum dos dois se deu conta que violavam-se mutuamente.

E eis que estava ali, meus leitores fiéis, a pluma de pavão rara e exótica caminhando sobre a rua de pedras que era o tecido mais frágil de todos os tecidos fragéis. Transcorria aqueles segundos anormais cheia de certeza. A direção dela era a dele e a ordem dos fatores não alterava nada. Ela andava nua no meio da noite, despida de mágoas, de previsões e escudos de proteção. Ia pra ele, completamente indiferente a hora em que desafiava o mundo, solitária, no exato meio da rua. Ia com o cabelo sem jeito, o vestido fácil e o sorriso de núcleo ruim da novela que, diz-se e todos sabem, somente ela sabe fazer. Há algum tempo já coseguia entrever a janela dele, onde um borrão escuro assustava a parede. Lá dentro um homem caminhava de um lado pra outro na inquietude desastrada que lhe era elegante.

O resto, aquilo que se desenvolveu no espaço sonoro daquela madrugada em que o Universo estranhamente conspirava com o desejo súbito e íntimo que fora resultado do chantily para cabelos da nossa pluma de pavão, bom, o resto não sei dizer pois só sei o que me é permitido ver. Posso acrescentar apenas que quando eu já partia para reclinar-me sobre esse texto, acredito ter ouvido-a dizer "Deus abençoe essa porra desse rímel".

Acho, foi apenas uma impressão minha. Mas de qualquer maneira, fiel leitor, saiba que já adquiri, e você também deveria, o meu cilíndro de rímel incolor que passarei a usar com frequencia. Em matéria de amor tá valendo tudo. Sim, porque há coisas que tardam mas que de fato não falham nessa vida. E, agora aprendi, rímel é uma delas.

4 comentários:

Carol disse...

hahaha captei vossa mensagem!temos um repertório parecido, caro colega! ;x

Camila disse...

Ai ai, Edu.
Nem sei mais como te elogiar.

Anônimo disse...

Hj meu dia tá diferente, só por causa desse texto.
Que isso soe num tom de agradecimento e não em num tom irônico.

Anônimo disse...

Edu...

leio seu blog sempre!!! Adoro!!!
Queria que você escrevesse algo sobre "Ser sexy"
adoraria "ouvir" isso de você.

um abraço

Dinélia Cristina

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